Por Luciene Godoy
Um amigo me pediu que
escrevesse sobre como seriam os casamentos no século 21.
Este artigo é uma resposta
possível.
O casamento começou
a poder existir como uma livre escolha, um casamento de amor e não de
interesses sociais, ainda nos séculos 18 e 19. Mas levaríamos anos e anos para
interiorizarmos e usufruirmos desta prerrogativa.
Freud, no começo do
século 20, dizia que a grande dificuldade do ser humano seria conseguir fazer
coincidir a linha sensual com a linha da ternura. Ou seja, desejamos quando não
temos e, quando temos – leia-se: quando nos casamos –, perdemos o desejo e
ficamos com a ternura.
Casamento, na
melhor das hipóteses, levava ao sentimento de amizade. Vida sexual forte e
vibrante, só pulando para fora dos muros do casamento. Imagem no mínimo
desagradável. Uma amizade que pressupõe a traição para haver prazer não se
sustenta sem alguma dor e rancor.
Além disso, o
marido falava e a mulher obedecia. As posições de poder eram muito
desfavoráveis a um dos lados.
Gosto de citar o
historiador Theodore Zeldin que diz que os grandes personagens que deflagrarão
as mudanças nos modos de se relacionar do século 21 serão os casais. Exatamente
porque a mulher, tendo atingido uma posição de ganhos materiais e importância
no mundo social como ser produtor e consumidor de riquezas, e não somente por
seu papel como mãe e dona de casa, obteve um lugar de potência à altura do que
tinha o homem.
Por isso, agora,
marido e mulher podem verdadeiramente ser companheiros e cúmplices. Será que o
erotismo, porém, continua sendo uma questão a ser resolvida fora do casamento?
Nada disso. Às
mulheres não interessa mais serem só mães. Querem e conseguem ser atraentes,
competentes e femininas – está passando o tempo da mulher querer ser “a
poderosa imitadora de homens”. Em outras palavras, companheiras ombro a ombro
nas batalhas com o marido para a construção de uma vida familiar de qualidade –
e isso inclui a satisfação sexual de ambos também.
Tendo o casamento
deixado de ser um cabide para a mulher arrumar um pai-cuidador e o homem, uma
mãe-cuidadora, começa a ser possível se obter nele exatamente o que se prometia
e não se obtinha: “Serem felizes para sempre”.
Falei bobagem?
Cito o exemplo de
um casamento de mais de 25 anos cuja esposa assim se expressa: “Temos uma união
que se renova… não nos acomodamos à rotina”. Não é o novo pelo novo. O que se
renova é o que se mantém vivo, só isso. Não é a invenção de modismos para
casais. É viver dentro do que a vida traz a cada momento de maneira
não repetitiva nem cega. Assim cada dia será necessariamente novo e o
casamento, idem.
Continuo a
descrição: “Temos uma forte ligação, somos amigos… Acima de tudo, existe um
sentimento genuíno de querer ver o outro bem”. Aqui, uma amizade/companheira só
possível entre pessoas realizadas consigo mesmas, sem aquele tom de mulher
boazinha e que sacrificou seu próprio potencial para viver a frase: “Atrás de
um grande homem sempre tem uma mulher maior ainda”. Não duvido que existam
algumas mulheres que consigam, sim, se realizar nessa posição. Mas há que ver
as diferenças de cada modo de vida.
Digo que o amor só
se mantém enquanto o outro enriquece a nossa vida, enquanto o outro acrescenta.
Ela diz: “Importa para mim o que ele pensa e diz a respeito do mundo, dos
nossos filhos, de nós”. Se ela se dá ao trabalho de olhar para os lábios dele
quando ele fala é porque o que ele tem a dizer tem muito valor para ela. É isso
que é namorar! É querer ouvir o que o outro tem a dizer.
Como se não
bastasse a lição de percepção e savoir-faire (saber-fazer) dessa grande
personagem que muito nos ensina, ela termina com essa pérola: “E tudo funciona
melhor se estamos felizes”. Ela não diz que é o outro que a faz feliz (também
faz, é claro!), mas que tudo – aqui, casamento – funciona melhor se estamos
felizes. Com o quê? Com a vida que conseguimos construir e viver eu apostaria.
Este é um casamento
século 21, que junta ternura e tesão, a potência feminina e a masculina, uma
cumplicidade sem sacrifício e a felicidade individual de dois seres tão
diferentes.
De quem estou
falando?
Glória Pires e
Orlando Morais na entrevista à Revista do mês de dezembro. Tirei meu chapéu!
Luciene Godoy é psicanalista. |
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